Por: Igor Salmeirão, Advogado Tributarista

Com o novo Governo, vieram uma série de medidas fiscais cujo objetivo é a aumento da arrecadação. Uma delas foi a edição da Medida Provisória nº 1.116 de 2023, que fez retornar o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF.

O voto de qualidade nada mais é do que um mecanismo procedimental de desempate de resultado proferido pelo órgão julgador. Ocorre que o CARF é composto de forma paritária, por igual número de conselheiros oriundos das carreiras fiscais do Estado e de membros do setor privado especialistas na área tributária.

Assim, o Conselho, em suas Sessões, Câmaras e Turmas é composto por número par de Conselheiros (são 8 conselheiros em cada Turma), sendo metade deles representantes do Fisco e a outra metade representantes dos Contribuintes. Nesse sentido, quando do julgamento de qualquer caso, é possível que haja empate no resultado e é em situações desse tipo que entra em ação o mecanismo do voto de qualidade.

Portanto, o voto de qualidade, previsto no art. 25, §9º, do Decreto nº 70.235, nada mais é do que a exigência de que, em caso de empate, o presidente do Colegiado julgador vote uma segunda vez. É dizer: haverá um novo voto preferido pelo presidente de Turma, Câmara ou Sessão que desempatará o resultado para um ou para outro lado.

Tal mecanismo gerou e continua gerando grande controversa dentro do mundo jurídico, isso porque cada Sessão, Câmara e Turma do CARF é presidida por um Conselheiro oriundo das carreiras da Fazenda Nacional, conforme dispõe o caput do art. 12 e art. 14, caput e parágrafo único, todos do Regimento Interno do CARF, assim como o já citado art. 25, §9º do Decreto nº 70.235. Muito embora isso não implique dizer que todo caso de empate resulta, necessariamente, em vitória para a Fazenda, é justamente isso o que ocorre, na prática, na grande maioria dos casos: “a União foi contemplada em 80% dos créditos tributários julgados com a aplicação do voto de qualidade pelo Conselho Administrativo Fiscal (Carf) entre 2017 e 2020”, conforme noticiado pelo jornal Valor Econômico1.

Tendo isso em vista, o Conselho Federal da OAB ingressou com a ADI nº 7.347 no Supremo Tribunal Federal pugnando pela declaração de inconstitucionalidade do retorno do voto de qualidade mediante a Medida Provisória nº 1.116 de 2023.

No entanto, a própria OAB, adiantando-se ao julgamento do feito, celebrou um acordo com o Governo Federal que fixou alguns critérios e condições para o que entende ser um retorno constitucional do voto de qualidade. Dentre essas condições destacam-se: (1) a exclusão de multa e cancelamento da representação fiscal para fins penais no caso de resultado favorável à Fazendo pelo voto de qualidade; (2) possibilidade de exclusão dos juros de mora e de parcelamento em doze meses no caso de manifestação do contribuinte pelo pagamento do tributo em até 90 dias contados do julgamento favorável a fazenda pelo voto de qualidade; (3) suspensão dos atos de cobrança no caso de oferecimento de garantia em caso de vitória da Fazenda pelo voto de qualidade.

Nota-se, assim, um raciocínio de fundo na proposta acordada: o de que no caso de decisão favorável a Fazenda pelo voto de qualidade há dúvida razoável quanto a regularidade do crédito tributário e, por isso mesmo, são cabíveis tais benefícios. Trata-se, em nosso entender, de aplicação de um princípio geral de direito, o do in dubio pro misero, ou, nesse caso, in dubio pro contribuinte.

Destaque-se, no entanto, que, nesses casos, o crédito tributário será definitivamente constituído e, por conseguinte, devido. Contudo, como houve dúvida razoável dos julgadores (lembrando que o voto de qualidade nada mais é do que mecanismo procedimental de desempate de julgamento), tais benefícios se justificariam.

Muito embora a proposta pareça se apresentar como um meio termo entre a inconstitucionalidade do voto de qualidade e a volta de sua aplicação nos moldes anteriores, não há certeza quanto a solução que dará o STF. Como dito, trata-se de proposta de acordo entre o Conselho Federal da OAB e o Governo Federal apresentado como aditamento à Petição Inicial da ADI nº 7.347 para que o STF dê aos artigos 1º e 5º da Medida Provisória nº 1.116 interpretação conforme à Constituição, nos termos do acordo.

Ocorre que, embora a Procuradoria Geral da República e a Advocacia Geral da União não tenham se oposto ao conteúdo do que foi acordado, a Ação tem por objeto Medida Provisória, que ainda está em período de discussão no Congresso

Nacional, já havendo diversas propostas de Emendas nesse mesmo sentido. Muito embora deva-se agir com cautela e aguardar a manifestação do relator da ADI, Ministro Dias Toffoli, bem como o decorrer da discussão parlamentar, é possível constatar-se um avanço para os contribuintes: volta o voto de qualidade, mas não em sua forma anterior.

Há que se comentar, como já referido, que o voto de qualidade não é uma unanimidade na doutrina e jurisprudência. Em primeiro, é possível alegar sua inconstitucionalidade por violação do princípio do in dubio pro contribuinte. O conceito constitucional de tributo, como ensina Ataliba, é toda prestação pecuniária compulsória, decorrente de lei, que não se configura como sanção por ato ilícito e é cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculado. Ora, se um tributo decorre de lei, caberá ao Fisco apenas averiguar se, de fato, o contribuinte praticou ou não a hipótese descrita na lei. Mister constatar, portanto, que se há dúvida quanto a ocorrência do fato gerador, haverá dúvida quanto a verificação fática da hipótese de incidência e, assim, dúvida quando a incidência tributária, sendo inconstitucional o lançamento. Nesse sentido, o empate é a manifestação de dúvida, não de certeza.

Em segundo, quando se afirma que o tributo é cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada, isso implica que não há espaço para discricionariedade. No entanto, quando da aplicação do voto de qualidade, o que efetivamente se faz é atribuir a uma única pessoa, o presidente do colegiado, a competência para decidir, sozinho, o resultado do julgamento, resultado esse escolhido de acordo com sua própria convicção pessoal do caso, ou seja, de maneira discricionária.

Ainda, é possível cogitar uma hipótese de usurpação de competência. Explico: uma decisão que originalmente, por força de lei, era atribuída a um colegiado paritário, acaba por ser decidida de uma única pessoa, o presidente, que no caso do CARF é sempre um representante da Fazenda Pública.

Portanto, longe de ser uma unanimidade, o voto de qualidade é, no mínimo, controverso. Seu retorno via Medida Provisória, ainda que convertida em lei pelo Congresso Nacional, terá de passar pelo crivo de constitucionalidade pelo STF.

Roberto Parentoni

Roberto Parentoni

Roberto Parentoni é Advogado criminalista desde 1991, fundador do escritório Parentoni Advogados. Pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, especialista em Direito Penal e Processual Penal. Presidente por duas gestões do IBRADD - Instituto Brasileiro do Direito de Defesa. É professor, autor de livros jurídicos e profere palestras pelo país.